Entrevista a Francisco Laranjo

Francisco Laranjo é um designer gráfico sediado em Londres e no Porto. Tem exposto as suas reflexões sobre temas como o critical design em diversas publicações, entre elas o Design Observer, a Eye Magazine, a Grafik ou o jornal Público. Criou a revista Modes of Criticism, a vertente editorial de uma plataforma de investigação e estúdio de design gráfico com o mesmo nome, e cujo segundo número foi editado em 2016, reunindo textos de vários autores convidados. Além da actividade como designer e investigador, deu aulas como professor visitante e convidado em universidades como o Sandberg Institute (Holanda), Royal College of Art, Central Saint Martins, London College of Communication, Kingston University, University of Westminster (Reino Unido), ESAD e Universidade de Coimbra (Portugal). Entrevistei o Francisco Laranjo a propósito da sua conferência nos Encontros de Design de Lisboa, que aconteceram na Faculdade de Belas-Artes a 17 de Novembro do ano passado. Com ele procurei clarificar o que pode significar ser crítico no design e como é que uma crítica à disciplina (através da prática e do ensino) pode produzir um contributo válido para a sociedade.

© Modes of Criticism
© Modes of Criticism

No texto “Critical Graphic Design: Critical of What?” chamas à discussão Ramia Mazé, que propõe três niveis de criticidade em design e Jan van Toorn, que fala sobre as esferas de acção do designer. Fazes isso de forma a demonstrar que o design crítico pode ser muita coisa. Demonstra pelo menos que não há um design crítico, que ele não é um valor absoluto, por assim dizer. Como referes noutros textos, isto não impede que a expressão seja usada de forma às vezes leviana por escolas, workshops, publicações… Entendes que existe uma falta de clarificação generalizada sobre o que é design crítico?

Isso é o que tenho tentado debater, principalmente através da revista Modes of Criticism e dos artigos no espaço público. A intenção é encontrar critérios para definir primeiro o que é a crítica e a partir dessa definição — das dimensões que envolvem um projecto ou uma abordagem que possa ser considerada crítica — fazer uma uma tradução de modo a investigar como é que podem ser aplicados ao design gráfico. É importante fazer uma distinção entre o termo critical design, como um campo dentro da disciplina do design, e o design crítico, que pode ser definido como uma qualidade. Não é exactamente o mesmo, a tradução acaba por não facilitar esta clarificação. É agora possível definir e mapear teoricamente critical design, identificando os seus critérios e problemas, enquanto que com ‘design crítico’ estamos a atribuir a qualificação de que o design tem alguma dimensão crítica, ou é um design que critica. Esta expansão na tradução pode muitas vezes criar confusões que não são produtivas para esclarecer a terminologia. Portanto, o que tenho tentado fazer na publicação [Modes of Criticism] é clarificar a génese da crítica utilizando a crítica literária e, através das fundações da disciplina — mesmo na teoria crítica —, tentar identificar quais são os critérios que definem o que é que ser crítico. Portanto, é fundamental considerar todas condições raciais, sociais, de género, de sexo, etc., e como é que a pessoa, o cidadão — mas também fazendo a tradução para o designer — está a conseguir lidar com as lutas mais prementes da sociedade em que habita. A partir daí consegue-se avaliar um projecto de design, porque é possível mapeá-lo em relação a estes critérios que definem o fundamento do que é ser crítico.

Noutro texto, intitulado “Critical Everything”, fazes referência a um segmento documental de Adam Curtis sobre a forma como o status quo político usa uma certa cortina de fumo de contradições para se tornar incriticável. No último filme de Curtis, “HyperNormalisation”, o realizador explora uma outra problemática que eu acho que é relevante para esta discussão: a ideia da câmara de eco, uma certa bolha em que nós vivemos e que nos dá exactamente o que nós queremos receber. A minha pergunta é se uma eventual popularização do critical design não levou a que se desenvolvesse a tendência para um género de meta-crítica que não permite olhar para os problemas reais da sociedade, focando-se apenas nos problemas internos da disciplina. Ou seja, a ideia de haver um estilo de critical design não fez com que ele se fechasse sobre si próprio?

O contributo essencial do critical design é o contributo para a própria disciplina de design. Ou seja, toda esta terminologia emergente é útil para contribuir para uma evolução mais crítica da disciplina, não tanto pela razão de existência destes termos ou campos disciplinares, cujo valor muitas vezes reside precisamente na sua existência temporária. Mas, é por facilitar essa transição, autocrítica, debate e escrutínio da própria disciplina, que permite haver auto contestação. Devido a esse processo, que é sempre teórico-prático, é capaz de desenvolver e de expandir a responsabilidade e a politização do campo disciplinar do design. Essa parece-me ser a dimensão mais importante desta terminologia emergente, que é utilizada enquanto ferramenta produtiva para contribuir para o campo disciplinar. O que o investigador de design Cameron Tonkinwise argumenta no artigo “Just Design” é precisamente isso. A capacidade destes termos facilitarem este debate, este questionamento e problematização, quase como se fosse necessário o design criar estes sub-campos disciplinares para cometer erros, para se aperceber da sua despolitização, lacunas e problemas. Só através destas oportunidades é que é possível haver momentos de questionamento que depois contribuem para que o design enquanto campo disciplinar consiga contribuir para a sociedade com mais substância.

Em 2015 foi editado o livro “The Debate”, que apresenta a transcrição de um debate lendário entre Jan van Toorn e Wim Crouwel em 1972, na Holanda. Esse debate expôs na altura, e continua a fazê-lo actualmente, as diferenças muito vincadas que existiam sobre a ideia do que é ser designer, principalmente a ideia do designer como prestador de serviços e a forma como este tem legitimidade ou não para intervir sobre a mensagem. Hoje em dia, talvez vejamos que estas diferenças não estão tão vincadas, ou seja, ideias como o designer enquanto autor ou o critical design tornaram- se relativamente pacíficas entre os designers. Isso não vem também limitar o debate? É interessante ver nesse debate a intervenção acesa do público — não havia ali uma paixão ao assunto debatido que se poderá ter perdido no processo?

Essa eventual retirada de alguma paixão, ou de algum compromisso, é resultado de uma muito maior pluralidade e portanto, nessa diversidade, é mais difícil existir um binómio. É importante, contudo, fazer uma ressalva: Wim Crouwel e Jan van Toorn partem os dois exactamente do mesmo princípio modernista de contribuição para uma melhor prática social, e partindo da mesma ideologia conseguem ter abordagens totalmente distintas. Mas enquanto um argumentava que o ideal seria uma uniformização e uma eventual neutralidade que conseguisse uniformizar e [trabalhar] quase passivamente, sem grande intromissão, o outro argumentava que isso era uma utopia inalcançável e, portanto, que as pessoas devem estar conscientes da complexidade do mundo que as rodeia. Portanto, julgo que este processo faz parte também da evolução do campo disciplinar do design e sua maturação. Devido à diversidade de abordagens e à maturação, que nunca é linear, tem sido possível observar a transição do designer como autor para o designer como investigador. E, como é que isto abre um grande vazio, principalmente entre os tipos de abordagem mais marginais ou académicas e a prática comercial. A tensão continua a existir mas, de uma maneira geral, houve uma retirada total da parte comercial desse espaço de tensão com a parte mais reflexiva. Estas facções são ainda mais notórias agora, mas existe uma total indiferença do mercado ultracomercial, que ignora qualquer tipo de dimensão crítica em prol do lucro e de ver a actividade do designer enquanto apenas uma profissão. “Design é um trabalho que eu faço das 9 às 5. Podia ter sido ensinado a ser mecânico, mas fui ensinado a mexer no computador, portanto é isto que eu faço e não tenho qualquer tipo de responsabilidade…” Este tipo de abordagem puramente pragmática continua a ser dominante, e a corresponder a 80%, talvez 90%, da prática do design. Consegues encontrar facilmente [quem contraponha] qualquer relevância deste trabalho de critical design ou de reflexão, a não ser porque gera modas visuais que podem ser absorvidas pela MTV ou reapropriadas, monetizadas e devolvidas, como uma linguagem mainstream que pode ser comercializada. Por isso, estes aspectos estão também dependentes do contexto cultural e político.

Não há muitas discussões como a que aconteceu entre Wim Crouwel e Jan van Toorn, por isso não é cauteloso dizer que é representativa dos anos 1970. É o contexto holandês muito específico dos anos 1970; o contexto político e de abertura cultural permitem que esse tipo de discussões aconteçam e por isso é que conseguem ser tão raras, por isso é que um livro acaba por ser republicado em 2015 sobre algo que aconteceu há tantas décadas atrás. É sintomático de um exemplo raro… Não diria único porque existem outros na história da disciplina, nomeadamente durante o construtivismo russo, onde havia estas discussões acesas, mas esse binómio é mais difícil de encontrar agora, precisamente por causa da diversidade. É importante também que essa diversidade facilite discussões com várias nuances e não seja tudo preto ou branco, os meios termos são importantes de debater.

Nesse sentido, eu perguntava-te o que é que se deve esperar dos designers perante a actual turbulência política e social que vemos crescer à nossa volta? Em segundo lugar perguntava-te se existe alguma responsabilidade particular da disciplina do design ou se a responsabilidade não é partilhada como um dever cívico e não apenas do design.

Há um dever necessariamente partilhado. Lembro-me que o Adam Curtis, no filme “HyperNormalisation”, começa com uma provocação feita à Patti Smith, onde ele diz que no fim dos anos 1960 e 1970 os artistas abstiveram-se de intervir na sociedade para se recolherem num canto, para procurar a autoexpressão em vez de se mobilizarem colectivamente, como cidadãos. Isto é também aplicável aos designers, argumentando que em vez de estarem a produzir algo que é fruto do seu conhecimento, juntando-se a movimentos colectivos conseguiam ter um efeito político provavelmente mais eficaz do que através da disciplina. Mas obviamente que não se podem desresponsabilizar da sua influência e importância na mediação de toda a produção intelectual, política, de noticias, que conseguem controlar e moldar cada vez mais a forma das pessoas pensarem e de criar eventos fictícios. Esta é uma das razões pela qual também tenho falado no design automatizado, porque nestas eleições [norte-americanas] — ainda mais do que em 2008 ou 2012, quando já se começava a ver a influência das redes sociais — foi possível ver vários bots criados há poucas semanas com notícias falsas e apoios constantes. Nas próximas eleições será ainda difícil de identificá-los. Começa a ser mais problemático porque quando um algoritmo conseguir estar a conversar e interagir com pessoas, vai ser mais complicado de dizer se é falso ou não. Há uma intromissão no sistema político que é importante e que é sempre, pelo menos até hoje foi, mediada também pelos designers em termos de comunicação, em propaganda digital, em material impresso, etc. Por isso é que não faz sentido muitas vezes uma comparação redutora a dizer que o designer tem mais responsabilidade que um médico ou que um cabeleireiro, porque são responsabilidades diferentes. Todos têm responsabilidades enquanto cidadãos, mas não se podem descartar do seu papel fundamental enquanto pessoas que ainda detêm, ou por quem ainda passa, esse processo importante de edição e mediação e, no fundo, de tensão, que é sempre uma negociação. O processo de design é sempre uma negociação. Portanto, [os designers] não se podem abster de entrar nessa negociação com consciência política e com a capacidade de entender e problematizar as consequências das suas acções.

Eu colocava-te então uma última pergunta: qual é o papel das escolas de design ao formar uma nova geração de designers que possa pensar e agir sobre estes assuntos de forma mais crítica e mais consciente?

O papel das escolas deve ser em muitos aspectos radicalmente diferente… Estou a falar da educação de uma forma geral. Diferente no sentido de se conseguir ter currículos que se adaptem e que sejam flexíveis aos movimentos sociais e políticos e que consigam responder a novos paradigmas de forma rápida e táctica. O mais fundamental papel das escolas reside na capacidade de saber politizar o acto e o processo de design e fazer com que os designers sejam capazes de pensar sobre sistemas e sobre a infraestrutura que facilita e que molda a forma das pessoas, e dos próprios designers, viverem, trabalharem e pensarem, mais do que ensinar alguma componente técnica, terminologia temporária ou moda discursiva e prática. A capacidade de investigar a infraestrutura e dotar os designers e alunos de metodologias e de ferramentas que lhes permitam reagir e intervir nessa infraestrutura é o mais importante. Essa é a forma que lhes vai permitir, não só como designers mas também como cidadãos, saber como é que podem utilizar o conhecimento que estão a adquirir de uma forma que lhes permita viver e trabalhar no sentido de gerar um futuro que eles pretendem em vez de apenas se adaptarem ao futuro que irá acontecer, muitas vezes apresentado como inevitável. Este será o mais importante papel das escolas.


Guilherme Sousa, 2017