A exposição de ideias que se segue é a segunda parte de uma leitura do discurso de David Foster Wallace aos finalistas de 2005 no Kenyon College, nos Estados Unidos, intitulado A Água É Isto. A partir daí, foi reunido um conjunto de referentes, sobretudo textuais, que se interligam numa narrativa que pretende encontrar propostas de ensino para o design. O texto aqui apresentado foi adaptado de uma versão mais longa, que foi revista e comentada por Sofia Gonçalves, e pretende funcionar como o guião para uma apresentação pública. “Quantos centros tem o mundo?” foi um projecto editorial académico desenvolvido em 2015, em parceria com Laura Araújo e João Rodrigues, e materializou-se numa publicação impressa, acompanhada de um anexo digital — algumas imagens do resultado podem ser vistas aqui.
Ler Parte I: Discurso—Apresentação Pública
Ler Parte III: Implicações—Existencialismo
Ler Parte IV: Proposta—Ensino
Parte II: Assunto—Micro-narrativas

O que disse David Foster Wallace que tenha provocado o riso no público?
[Estamos novamente no campo da retórica. O que procuramos provocar aqui é a caracterização da mensagem transmitida, a ideia que desperta o confronto de expectativas.]
Wallace sugere uma mudança de perspectiva. Esta mudança de perspectiva é efectuada através de dois momentos fundamentais. O primeiro é a consciencialização e observação do que nos rodeia — o questionamento do óbvio. O segundo momento é a descentralização do nosso olhar na sua estreita ligação ao sujeito — a perda do protagonismo.
Podemos relacionar esta primeira premissa com uma segunda ideia avançada no discurso, a possibilidade de “aprender a pensar”. Ambas as acções conduzem a uma quebra com aquilo que Wallace caracteriza como pensamento por defeito. É precisamente isso que conduz ao riso do público, e de facto existe um ritmo quase performativo no qual se desenrola o discurso aos finalistas: através da exposição feita pelo orador, o público vai-se tornando consciente deste pensamento por defeito e, idealmente, abandonando-o até culminar num aplauso que poderia indicar uma recepção correcta da mensagem. Sabemos, no entanto, que esta é uma interpretação arriscada — há um perigo escondido por trás do carácter conclusivo de uma ovação. Por isso falamos em termos ideais e não concretos.
Ao apelar a uma quebra com o pensamento por defeito, Wallace apresenta uma alternativa racional baseada num conjunto de valores, entre os quais se destaca a tolerância. Associada à tolerância encontramos uma noção profunda de humildade e até dúvida, perfilando um abandono das certezas absolutas. O sujeito transformado que aqui imaginamos só pode existir em igualdade com o outro. Neste entendimento global, o sujeito só pode ser o outro.
Esta é a mudança de perspectiva que dispensa o protagonismo do eu. A perda dos fundamentos da realidade única, das macro e meta-narrativas individuais de um sujeito ou comunidade cultural, dá lugar ao espaço virtualmente infinito das micro-narrativas, como foi enunciado por Jean-François Lyotard. É uma condição que este caracterizou como pós-moderna e com a qual nos podemos ainda identificar na contemporaneidade.
“Simplificando ao extremo, considera-se que o «pós-moderno» é a incredulidade em relação às meta-narrativas. Este é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, pressupõe-na. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde especialmente a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde os seus functores, o grande herói, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objectivo.” A Condição Pós-Moderna (1979), Jean-François Lyotard
Lyotard encontra na crise das grandes meta-narrativas uma crise de legitimação dos discursos. Termina assim o segundo capítulo de A Condição Pós-Moderna:
“(…) saber e poder são as duas faces de uma mesma questão: quem decide o que é saber e quem sabe o que convém decidir? A questão do saber na era da informática é, mais que nunca, a questão do governo.”
Perante a crise de legitimação, o primeiro passo a dar é pensar além das verdades únicas e absolutas, abdicar do pensamento por defeito e assumir uma posição de tolerância perante as verdades do outro. Os conceitos até aqui enumerados começam a tornar-se indissociáveis.
[Vemos que a consciência de um mundo constituído por micro-narrativas levanta novos desafios e apresenta complicadas exigências. Um dos mais preponderantes desafios a encarar é o do diálogo.]

Em 2011, Rana Dasgupta publicou Tóquio: Vôo Cancelado. O livro, uma aproximação contemporânea a Canterbury Tales de Geoffrey Chaucer, apresenta-nos 13 passageiros de um vôo cancelado, presos num aeroporto, que decidem partilhar histórias entre si. Cada história é a descrição de situações mirabolantes que acontecem em pontos diferentes do globo.
O romance apresenta-nos uma possibilidade de criação sobre as micro-narrativas globais, o multiculturalismo e a globalização. É um subtil manifesto à oralidade, à comunicação e ao diálogo como uma das maiores riquezas da experiência humana. É também uma ficção.
“Não me diga uma coisa dessas! Toda a gente sabe histórias! Acabei de lhe contar que dormi na mesma cama da minha mulher todas as noites dos últimos quinze anos no mesmo quarto do mesmo apartamento dos mesmos subúrbios de Tóquio—e olhem para todas estas pessoas tão diferentes umas das outras! Só tem de me dizer como vai para emprego todas as manhãs no sítio onde vive e isso para mim já é uma fábula! É uma lenda! Desculpe, estou cansado, com um bocado de stress, e em geral não é assim que falo mas acho que quando estamos juntos como agora o que é preciso são histórias. Alguém respondeu: eu sei uma história que posso contar. Tão simples quanto isso.” Tóquio: Vôo Cancelado (2011), Rana Dasgupta
Assumindo como condição a multiplicidade de realidades e experiências que descrevemos antes, torna-se fundamental dialogar para compreender. As micro-narrativas são, por natureza, entrópicas para o sujeito que as tenta compreender de um ponto fixo. Só o contacto directo com o outro pode encurtar as distâncias sociais e culturais. É também uma questão de curiosidade honesta, mesmo sabendo que não se pode conhecer tudo.
O diálogo conduz à compreensão, mas esta já deve existir antes do momento de contacto. Este paradoxo tem sido um dos maiores obstáculos ao diálogo multicultural, especialmente nas sociedades contemporâneas.
[Num ensaio com o sugestivo título-questão “Conseguimos nós viver sem o outro?”, Karen Armstrong aprofunda esta ideia do diálogo multicultural do ponto de vista das religiões.]
“O maior desafio e o dever da nossa geração é construir uma comunidade global. Qualquer ideologia que produza ódio, desprezo e suspeita — seja ela religiosa ou secular — não se conseguiu adaptar aos nossos tempos. A nossa modernidade ocidental é agressiva. A nossa tecnologia permitiu-nos matar mais pessoas com mais eficácia do que antes. Até mesmo o nosso discurso é agressivo — na política, nos meios de comunicação, na universidade; não nos basta procurar a verdade— também temos de derrotar os nossos opositores. Não me surpreende que uma tão grande parte do discurso religioso tenha absorvido esta beligerância moderna. Falamos muito acerca do “diálogo” hoje em dia, mas isso é algo difícil para nós, modernos, conseguirmos alcançar. O diálogo significa que não nos limitamos a falar, mas que também ouvimos — algo em que não somos muito bons nas nossas sociedades demasiado faladoras e cheias de opiniões.” Conseguimos nós viver sem o outro? (2008), Karen Armstrong
Karen Armstrong foca-se na necessidade de encontrar terreno comum para discutir livre e abertamente questões que têm sido dominadas por extremos radicalizados. Quando se refere à crise dos cartoons de 2006 na Dinamarca, expõe o quão intolerantes foram os responsáveis ocidentais, que ao mesmo tempo se apressaram a acusar o outro lado da barricada dessa mesma intolerância. Num choque de valores, em que poucas noções culturais eram partilhadas, ambas as partes fecharam-se nos seus dogmas, impedindo o diálogo e crispando as relações.

Armstrong aponta também responsabilidades aos media, pela sua insensibilidade no trato destes assuntos. Isto dá-nos outra direcção na nossa exploração. Ainda nos debruçamos sobre as questões do diálogo e continuamos a movimentarmo-nos no espaço conceptual das micro-narrativas, mas avançamos para as questões de identidade, com uma breve leitura do sociólogo Stuart Hall. Vamos ancorar esta leitura em duas obras: a vídeo-palestra Representation & The Media e o seu livro A identidade cultural na pós-modernidade.
[Representation & The Media é uma peça peculiar, repleta de detalhes formais que merecem ser observados.
Por exemplo, o vídeo mostra Hall num púlpito como se se dirigisse a um público de auditório, expondo as suas ideias num tom de apresentação pública. No entanto, há uma estranha aura constante na gravação, que deriva do facto de cedo percebermos que tudo foi gravado num estúdio, replicando o cenário anteriormente descrito.
Se antes falávamos de riso, teremos de apreciar os momentos em que Hall diz uma piada e nós esperamos uma gargalhada colectiva que nunca chega a acontecer.
Outra coincidência surge logo na introdução, feita por Sut Jhally, que refere uma citação de Marshall McLuhan sobre os peixes e a invenção da água, em tudo semelhante à pequena história introdutória de David Foster Wallace em A Água é Isto. Uma analogia, de resto, erradamente atribuída a McLuhan, pois existem registos anteriores de outros oradores que a ela recorreram, discutindo-se ainda hoje quem a terá usado primeiro.]
“Marshall McLuhan once said he wasn’t sure who discovered water, but he was pretty sure it wasn’t the fish. In other words, when we are immersed in something, surrounded by it the way we are by images from the media, we may come to accept them as just part of the real and natural world. We just swim through them, unthinkingly absorbing them as fish in water. What cultural studies would like us to do is step out of the water in a sense and look at it, see how it shapes our existence, and even critically examine the content of the water.” Representation & The Media (1997), Stuart Hall (introdução por Sut Jhally)
Para falar do assunto da representação, vamo-nos auxiliar da ideia de estereótipo que Hall apresenta. Sobretudo no que diz respeito às comunicações em larga escala, levadas a cabo pelos media, é mais que relevante perceber o papel que as representações estereotipadas desempenham no contexto geral das micro-narrativas. O acto da representação é extremamente sensível e deve ser encarado com responsabilidade. Precisamente a sensibilidade que faltou aos media ocidentais no imbróglio dos cartoons dinamarqueses.
[No campo do conhecimento em que Hall se destacou, e que inclusive ajudou a criar — os estudos culturais — a representação é entendida como uma forma de criar significado. Hall refere que, na contemporaneidade, algo não existe ou acontece realmente até ser representado.]
Também nas questões raciais os media têm tido, ao longo dos anos, a sua quota-parte de problemas de representação. E se actualmente os casos de representações racistas e redutoras podem ser mais escassos, não é necessário recuar muito no tempo para encontramos um imaginário na televisão, no cinema e na publicidade dominado por ideais racistas ou sexistas.
O facto destes problemas não serem tão flagrantes nos nossos dias não significa que eles não existam. A sua capacidade de se diluírem na paisagem saturada de imagens em que vivemos é uma das suas maiores ameaças, que apenas podemos combater pondo o óbvio em causa, questionando as representações com que lidamos diariamente. Desvalorizar esta situação pode comprometer seriamente as nossas possibilidades de criar diálogos tolerantes e informados.
[Antes de seguirmos para o segundo texto de Stuart Hall, chamamos a atenção para uma entrevista a Michael Ray Charles, pintor norte-americano, sobre estereótipos raciais.]
Desde 1993 que o trabalho de Michael Ray Charles aborda o tema dos estereótipos raciais, recuperando o passado da arte comercial, especialmente as imagens provocantes e perturbadoras que activam uma discussão em volta de assuntos como o racismo ou a homofobia.

Numa entrevista com Steven Heller, refere exemplos que partilham a ideia de manipulação de uma imagem ou de uma concepção, tornando um caso particular em algo geral, daí nascendo o estereótipo. O ciclo só poderá ser quebrado quando formos confrontados com a diversidade real que existe para lá das generalizações culturais. Mais uma vez, questionar o óbvio, perguntar o que é a água…
Chegam a ser inquietantes os relatos de pessoas que sentem estas imagens como pilares do seu conhecimento cultural e etnográfico, e por isso vêem o trabalho de Michael Ray Charles como uma ofensa. Não podia haver melhor ilustração dos efeitos nefastos causados pela passividade perante as representações culturais que chegam até nós.
“Speaking of beauty, once I gave a talk before a Jewish group of women and men between sixty and seventy years old. I showed them illustrations from Little Black Sambo, among other things, and talked about the negative connotations of that book. A woman came up to me and said, “I loved that book. That was my introduction to black people.” I had the same thing happen to me recently. An elderly white woman came up to me and said, “Please don’t make the Sambo ugly; I love little Sambo. I grew up with the Sambo; it’s so dear to me.” She started crying. I said, “You’re speaking of this image as though it were a person.” She went on to say that she’s not racist, her children grew up around black people, they had black people over all the time, and she worked in a school in which she taught black students. This woman began making a cradling gesture as if she were holding a little baby. She did not see that image as anything but a black person. That’s one of the things that really motivates me to continue my exploration into these images and how they affect us.” Michael Ray Charles on Racial Stereotypes, entrevista por Steven Heller.
Se aqui marcámos uma crise das macro e meta-narrativas que surge com o Pós-Modernismo, vamos agora ver como também as identidades entraram em crise nesse momento, segundo a óptica de Stuart Hall.
[É precisamente este o assunto basilar de A identidade cultural na pós-modernidade. Neste pequeno livro, Hall traça uma história do sujeito, que divide em três categorias, pelas diferentes concepções de identidade que lhes podem ser atribuídas: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.]
Em A identidade cultural na pós-modernidade, num capítulo intitulado “Nascimento e morte do sujeito moderno”, Hall dedica-se a identificar os factores que, no auge da modernidade, causaram um deslocamento do sujeito, a perda do seu centro num momento de ruptura.
[De forma muito sintetizada, os factores são:
— a redescoberta e reinterpretação da leitura marxista sobre a história e consequente perda da individualidade;
—a descoberta do inconsciente por Freud e a crise da razão que daí advém;
— a linguística estrutural de Ferdinand Saussure que apresenta a língua como um sistema social e cultural;
— os regimes disciplinares descritos por Michel Focault, que são apresentados como “produto das novas instituições colectivas e de grande escala da modernidade tardia”;
— o feminismo e os novos movimentos sociais dos anos 60 que, entre muitas outras conquistas, introduziram uma nova forma de participação política baseada na ideia de contra-cultura.]

Pode-se dizer que é deste deslocamento do sujeito que surge a crise das identidades, uma crise que é evidenciada pelo desmistificar de certas ideias anteriormente tidas como certas. Uma das mais importantes na nossa existência cultural é a questão da identidade nacional, que Hall desmonta de forma muito interessante.
O sociólogo jamaicano define a cultura nacional como um discurso, e expõe a identidade como uma construção, muitas vezes ficcional, que geração após geração se sedimenta, rumo a tornar-se num facto incontornável. Quando toda a construção é desmoronada, o Homem pós-moderno tem cada vez mais problemas em identificar-se, o velho sentimento de pertença começa a diluir-se. Perante esta crise, e em rápido movimento em direcção a um mundo totalmente globalizado, muito se fala numa homogeneização das identidades culturais.
A possibilidade que Hall apresenta é, no entanto, diametralmente oposta: as múltiplas identidades não desaparecem, mas mudam profundamente de carácter. Outrora fixas e sólidas, são agora híbridas e mutáveis. Ao mesmo tempo, a nível global, perdem-se as velhas identidades, e novas identidades surgem, multiplicando-se espontaneamente. As identidades tornam-se imprevisíveis, também elas virtualmente infinitas.
[Aquilo que um dia foi uma identidade indiana, pode ser agora dividida na identidade dos indianos que vivem na Índia, dos que vivem na Europa, dos que se identificam com os “valores europeus” ou dos que os rejeitam, e por aí fora.]
“De acordo com essas “metanarrativas” da modernidade, os apegos irracionais ao local e ao particular, à tradição e às raízes, aos mitos nacionais e às “comunidades imaginadas”, seriam gradualmente substituídos por identidades mais racionais e universalistas. Entretanto, a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do “global” nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do “local”. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente,.” A Identidade Cultural na Pós-Modernidade (1992), Stuart Hall
As micro-narrativas impõem novas maneiras de interpretar o mundo, de nos posicionarmos nele, de nos relacionarmos com o outro, de dialogarmos e de nos movimentarmos. Não importa qual seja a escala segundo a qual escolhemos olhar para o mundo, os problemas são os mesmos.
A Água é Isto é uma brilhante exposição deste paradigma — profundamente humana e, quanto mais pensamos nela, mais desconcertante. E se tentámos esclarecer alguns dos pontos que nos foram trazendo até aqui, o mais certo é que as dúvidas se tenham acumulado pelo caminho. Chegamos mais frágeis do que partimos, estamos mais vulneráveis, verdadeiramente em crise. Mas este desamparo não é necessariamente uma coisa má. Prossigamos.
(continua na 3ª parte)
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